São Martinho de Anta, 28 de Dezembro de 1953 É uma pena que os montes não falem, não dialoguem nem testemunhem. Estes meus, pelo menos. Além da emoção de os ouvir responder ao monólogo que o silêncio em que vivem apagou nos meus lábios e tornou interior, gostaria sobretudo de saber se fica na alma deles, como na minha, a marca indelével de cada um dos nossos encontros. É de tal modo apertado e medular o abraço que damos, tão íntima a comunhão que nos une horas a fio, que não me resigno à ideia de que só do meu lado haja consciência, e do outro o amor seja passivo.
Diário VII Mas nunca poderia viver fora dela como escritor. Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo.
A Criação do MundoO ponto de partida
A aldeia do escritor, onde nasce e onde está sepultado em campa rasa, granítica, com uma torga. Ponto de partida para um passeio de fim de semana ou mais demorado. Quando quiser, como quiser, o tempo que quiser.
Muitos itinerários são possíveis a partir desta aldeia que se tornou vila e que abraça as paisagens transmontanas. O Espaço Miguel Torga, de autoria do arquiteto Souto Moura, é um equipamento cultural com uma exposição permanente sobre a vida e a obra de Miguel Torga, uma sala de exposições temporárias e um auditório onde se realizam regularmente palestras, concertos e recitais. Mesmo ao lado, cinco minutos a pé, a porta da Casa Miguel Torga abre-se para acolher os visitantes: o hall de entrada com as armas decorativas e a boina, a sala de estar, a lareira e o cadeirão onde o autor se sentava e escrevia, primeiras edições, fotografias e manuscritos, traduções em várias línguas, obras de Andrée Rocha e Clara Rocha.
Ar livre, o céu, o cheiro a terra, a paisagem que agarra as cores do tempo, a pedra, o granito. Nos Passos de Torga é um trilho que parte da Casa Miguel Torga e termina no Eirô, o largo de São Martinho de Anta. No centro da vila havia dantes um negrilho (a designação popular do olmo negro), a árvore centenária a que o autor dedicou o poema "A um Negrilho". O trilho é um passeio circular de 11 quilómetros que respira natureza, arbustos, pinheiros e azinheiras, tojo, giestas brancas e rosmaninho.
A escola primária de janelas com vista para o Marão, evocada nas primeiras páginas de A Criação do Mundo, e onde, anos mais tarde, o poeta passou uma tarde a replantar as mimosas da sua infância. Na povoação de Garganta, outra antiga escola cujo edifício é agora o Pólo Arqueológico da Garganta, um equipamento que preserva alguns vestígios arqueológicos recolhidos na Necrópole das Touças e na mamoa de Madorras, ambas a merecerem uma visita.
No alto da serra, com o Marão e o Alvão à vista, está a Senhora da Azinheira, com o seu alpendre que lembra o cenário do conto "Natal". Capela branca, singela, do século XVII, retábulo barroco de talha dourada. O sino, os castanheiros em volta, a fonte velha, o cheiro a rosmaninho, a romaria de 15 de agosto, as fragas que se tornam mesas de merenda por um dia.
A poucos quilómetros, na aldeia de Parada de Pinhão, encontra-se a Casa Aires Torres. A vida e obra de Aires Torres, poeta, ator, militar e revolucionário. A sala de exposição permanente mostra painéis biográficos, objetos pessoais e uma parte da sua biblioteca. Em Sabrosa, vale a pena visitar o castro, datado da Idade do Ferro e depois ocupado pelos romanos. Destacam-se também a Igreja Matriz, do século XVIII, em estilo barroco, a Casa da Capela e a Casa da Pereira, onde, segundo a tradição, teria nascido Fernão de Magalhães. A grande viagem de circum-navegação é contada na exposição Locais e Culturas da Viagem de Magalhães, no Parque BB King, em Sabrosa, que permite vivenciar a odisseia e descobrir territórios longínquos.